Sentada de pernas cruzadas na relva à minha frente, Gabi não percebe bem porque quero conversar com ela – se a sua história, como me dirá daqui a pouco, já caminhando para a despedida, não tem nada de extraordinário. “Como assim?”, questiono-me. “Como não?”
Gabriela Raposo sempre quis ter filhos. Num mundo ideal e sem limitações impostas pela vida, cinco ou seis. Tiago Belchior também. Um ano depois de casarem, começaram a fazer por isso. Mas o entusiasmo acabou por dar lugar à preocupação. Pegaram em calendários e fizeram contas aos dias dos meses. Encheram-se de esperança e desiludiram-se. Muitas vezes. “Era uma dor estranha, que não era muito partilhável ou compreensível. De cada vez que me vinha o período sentia que tinha perdido qualquer coisa, como se fosse um mini aborto”, partilha. Para a arquitecta, agora com 39 anos, e o engenheiro do território de 40, o desejo de ter um filho tornou-se aos poucos num sonho sofrido.
Um ano depois, fizeram testes, todos os que havia para fazer. Nada. Nenhum problema, nenhuma incompatibilidade. Inscreveram-se no programa de procriação medicamente assistida de um hospital público. Surpreenderam-se com a rapidez do processo e hoje atestam a competência com que foram tratados. Ao fim de outro ano, estavam prestes a iniciar a fertilização in vitro. Até que de repente mudaram de ideias. “Percebi que não era por ali”, conta Gabriela. “Não me identificava nada com aquele processo, demasiado artificial. Não era aquilo que queria.” Falou com o marido. Sugeriu-lhe outra coisa.
Sempre tinham pensado na adopção: dos cinco filhos imaginados pelo menos um dos mais novos seria adoptado. A realidade fez apenas com que a opção social ganhasse prioridade sobre a biológica. E apesar da frustração e da angústia causadas pela infertilidade, a mágoa foi-se no momento em que decidiram outro caminho. Era uma escolha. Nunca mais se lembraram do que os levara até ela.
Responderam a inquéritos e entrevistas.Viram-se forçados a ponderar questões imponderáveis: que grau de deficiência tolerariam que o filho tivesse? Que ambiente familiar de origem consentiriam? Que antecedentes clínicos estavam dispostos a aceitar?
Enfrentaram todas as provas sem reservas. E prepararam-se para esperar. Toda a gente sabe como os processos de adopção duram eternidades em Portugal.
O telefonema decisivo chegou cinco meses depois. “É para dizer que entraram para a lista de espera nacional.” E assim, sem aviso ou preparação, Gabriela começou aquilo que pensava tratar-se de um período de gestação “de elefante”, como diz. Afinal, toda a gente sabe como os processos de adopção duram eternidades em Portugal.
Entretanto, prosseguiram com a vida sem desvios ou suspensões: Tiago pediu uma licença sem vencimento para ajudar num projecto agrícola de família; além das aulas que dava na faculdade, Gabi despediu-se do ateliê de arquitectura para se dedicar ao doutoramento – não havia razão para o adiar. Afinal, toda a gente sabe como os processos de adopção duram eternidades em Portugal.
Ou não.
Três meses depois de terem entrado para a lista de espera, novo telefonema: “Temos um projecto para vos apresentar.” “Um projecto?”, questionaram-se. Só então perceberam que o projecto era um filho. Tinham sido avisados de que o primeiro contacto seria assim: apenas dois ou três dados sobre a criança, para decidirem se queriam saber mais. O resto das informações seria dado presencialmente.
Tinham um filho à distância de um sim.
E as surpresas não ficaram por aí. Logo a seguir, quando quiseram saber o sexo: “Pois, aí é que está o problema”, ouviram, com o coração a acelerar. “Não é um… São gémeos.” Pausa. Olharam-se e decidiram-se: sim. “Quando ainda pensávamos em tentar engravidar com ajuda médica”, lembra Gabriela, “sabíamos que podíamos ter gémeos, portanto era como se fosse isso.”
Passadas 24 horas, cada um recebia o seu envelope de feltro com a fotografia de um bebé: menino e menina. “A primeira coisa que pensei foi: ‘Estes vão ser os meus filhos’. É verdade que é estranho.”
Pensar antes de sentir: será esta a principal diferença entre receber ou ter um filho. Não há gravidez nem pontapés na barriga nem ecografias nem o som do coração a bater nem parto. E não há nove meses de mentalização. “Mas, no dia seguinte, quando os vimos pela primeira vez, sentimos que para eles nós já éramos os pais. As crianças também tinham visto fotografias deles. “Olharam para nós como as pessoas que os iam tirar dali, levar para casa e tomar conta deles para sempre.”
Na semana seguinte, todo o tempo que não passavam a visitar os gémeos na instituição foi ocupado com os preparativos. Precisavam de camas, cadeiras, roupa, brinquedos, tudo. A dobrar. “Era muita, muita coisa, em pouquíssimos dias. E ainda por cima estávamos os dois sem emprego”, explica Gabriela. A ajuda não chegou a dobrar, mas a triplicar ou mais.
Assim, de repente, como tudo o que foi acontecendo nesta história, foram surpreendidos com nove camas de bebé emprestadas, seis cadeirinhas, dois carrinhos de gémeos, dois carrinhos individuais, três camas de viagem, sem falar no vestuário.
O entusiasmo alastrou-se a tanta gente e a azáfama foi tal que decidiram registar esses primeiros dias em emails diários para os mais próximos.
“Dia 4: Almoçaram e depois chegou o momento esperado da sesta. Era vital que corresse bem, que eles dormissem, e assim aconteceu. (…) Caímos para o lado enquanto dormiam e aquele silêncio foi imensamente gratificante. Não por não os ouvirmos mas o seu significado para tudo o que tem acontecido nesta semana, e a sua adaptação ao quarto, à casa, a nós (…) Amanhã vamos buscá-los de manhã e aí seremos PAIS PARA SEMPRE.”
Dia 5: “Os nossos filhos foram amados e agora vão ser ainda mais, e, sim, desde que os vimos a frase é essa, vieram ao mundo para ser nossos filhos.”
A adaptação pode ter sido mais brusca e mais forçada, mas aconteceu sem muitos mais sobressaltos do que quando se tem um bebé. As maiores dificuldades do quotidiano foram as mesmas que tantos pais conhecem bem: ele demorava a adormecer, ela a comer, e eles, os adultos, esgotavam-se com as novas tarefas, os novos horários, as novas preocupações, os novos sentimentos. Tudo normal: bem-vindos ao maravilhoso mundo da paternidade.
Ao fim de cinco extenuantes mas gratificantes meses, quando tudo parecia encaminhar-se para a estabilização e a rotina, afinal não. Outra surpresa. No último dia da licença de maternidade, Gabriela sentiu uma má-disposição fortíssima e fora do normal. Soube-o logo. Nunca mais pensara no assunto, garante, mas soube-o. Fez o teste. Estava grávida.
Só então se lembrou da teoria que lera ou ouvira de que muitos casais que não conseguem ter filhos e adoptam acabam por engravidar a seguir.
Nos fóruns da internet dedicados ao tema não falta quem garanta que é frequentíssimo.
Mas os poucos dados científicos que existem apontam para não acontecerá a mais de 10% dos casais adoptantes, percentagem semelhante aos que engravidam depois de recorrerem à fertilização in vitro. A explicação mais apontada é a da despreocupação: afastado o stress, o organismo disponibiliza-se e a natureza completa-se.
E assim Gabriela e Tiago foram dos zero aos três filhos no espaço de um ano, o mesmo tempo que a maior parte dos casais reservam para apenas um filho. Com uma gravidez pouco descansada, muito mais trabalho, uma empregada nova, mas, garantem, as mesmas emoções, o mesmo sentimento.
“Eu acho que é progressivo, nós vamos amando”, reflecte. “Mas com os filhos biológicos também é assim: gostamos sempre mais.” Com os filhos adoptados a responsabilidade pode até ser maior, com um processo “mais introspectivo, no sentido em que nos põe mais em causa enquanto mãe/pai.” Para quem está de fora, surgem questões sobre as diferenças entre os dois tipos de descendência, o que sentirão os pais. Gabriela nem lhes dá hipótese. “A nossa experiência ‘mista’ é muito rica, sem qualquer inconveniente. Creio que os problemas somos nós que os criamos nas nossas cabeças.” Ponto final.
Gabriela e Tiago queriam cinco, perceberam que podiam não ter nenhum, até que vieram dois e depois mais um.
Desconhecidos já acharam que o gémeo era parecido com o pai. E a importância do contexto educativo está mais que comprovada, superando, em muitas e importantes vertentes, o genético. Se até o desenvolvimento da inteligência é influenciável pelo meio, mais o são outras características da personalidade. Entre tanto optimismo, não consegue “contudo” evitar um receio: que os filhos mais velhos, nascidos noutra família mas escolhidos e amados por esta, possam achar o mesmo que todos os irmãos mais velhos acham, que a mais nova recebe mais atenções. E que pensem que isso acontece porque ela é do mesmo sangue, e não porque é, simplesmente, mais pequena.
O casal já decidiu que os gémeos serão os primeiros a conhecer os seus antecedentes familiares. Só eles, mais ninguém, e eles é que decidirão se o querem partilhar com o resto da família e amigos. Para já, nem os avós sabem alguma coisa. Gabi e Tiago querem protegê-los de preconceitos e interpretações, tantas vezes involuntários. Também não querem revelar pormenores que possam, de alguma maneira, identificá-los, sobretudo pelos pais biológicos. Mais um medo a acrescer aos tantos que já se sente em relação aos que são 100% nossos.
Neste momento, os gémeos já estão com cinco anos. Vão sabendo que nem sempre estiveram ali com aqueles pais, e que vieram de outro lugar. Mas para Gabriela e Tiago uma coisa é saber que se vai contar a verdade, outra, é saber de que forma, ou ansiar por esse momento. Há uns meses, a miúda dizia no meio de uma brincadeira que um elefante era filho de um tigre quando se corrigiu:
- Ah, que disparate, não podem ser mãe e filho, são diferentes…
- Até podem, filha. Olha nós. Nós também somos diferentes e eu sou tua mãe.
A criança mostrou surpresa, como se pensasse naquilo pela primeira vez. E então Gabriela explicou-lhe:
- Às vezes há mães que ficam com bebés de quem tomam conta, com quem estão todos os dias, a quem dão a papinha, o banho, põem a dormir, e essas é que são as mães, porque as senhoras que tiveram esses bebés não puderam ficar com eles…
- A mãe biológica? – disparou o irmão que brincava com uns carrinhos, distraído, ali ao lado.
Sim, confirmou Gabriela, sem perceber nem querer, como é que o miúdo sabia aquilo, conhecia o termo e o dizia na característica simplicidade infantil.
- Sim, é isso. – O coração apertado, as mesmas lágrimas contidas com que recorda esse momento.
Já tinha dito “bem-vindos ao maravilhoso mundo da paternidade”?
Imagem e textos Retirados de Carrossel
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