Quarta-feira, 18 de Janeiro de 2012

Da adoção e da dificil arte de amar

Da adoção e da dificil arte de amar

 

Desde muito cedo - cerca dos meus doze anos, talvez - disse que um dia gostava de adotar uma criança. As razões eram simples: sabia o quão importante era para mim ter e crescer com uma família e considerava que era certamente muito triste que a algumas crianças isso fosse negado. Mais, teorizava eu  - por essa tenra idade, sim - que se cada familia que tivesse essa possibilidade o fizesse haveria certamente muito poucas crianças a crescer sem esse privilégio.

 

Cresci sem que a ideia nunca me tivesse abandonado. Á medida que os anos foram passando, sedimentei-a mais dentro de mim e cheguei a ter a certeza que a colocaria em prática. Aliás, chegou mesmo a fazer parte do projeto de vida familiar com o pai da M.

 

Independentemente de vir ou não a ter um filho biológico, sabia que não desejava adotar um bebé. Em primeiro lugar porque esses têm, por razões óbvias, maior probabilidade de um futuro em família. Em segundo lugar porque era importante que a criança que escolhessemos para filho ou filha nos escolhesse também. Acredito que, como em qualquer questão que envolve afetos, a entrega do coração é um ato de reciprocidade em que mesmo a filiação natural não é condição intrinseca, mas fruto de uma relação que se constroi e em que se investe todos os dias. Por estas duas razões fundamentais, a adoção seria sempre de uma criança a partir dos quatro ou cinco anos de idade. Dificilmente menos.

O facto de ter trabalhado muitos anos como advogada fez-me ter uma perceção mais alargada do que, de há uns anos para cá, significa adotar uma criança institucionalizada. Se há umas décadas atrás os célebres orfanatos tinham essencialmente crianças abandonadas á sua sorte ou entregues á porta da igreja por falta de condições económicas ou motivos de desonra e vergonha das suas progenitoras, o cenário das últimas décadas é já bem diferente. Uma boa parte das crianças que vão chegando de há um tempo a esta parte ás diversas intituíções de acolhimento são, numa assustadora maioria, crianças muito negligenciadas, quando não mesmo abusadas e maltratadas por aqueles que as deviam, em primeira linha e no mais básico instinto animal, proteger. São infâncias marcadas desde as mais tenras idades por inúmeros desconfortos, esmagadoras ausências e aterrorizadoras presenças. São crianças que facilmente a vida torna dificieis, assustadas e revoltadas. São crianças que trazem marcados na pele e na alma episódios que a maioria de nós prefere nem imaginar. São crianças que, cada vez em maior numero, chegam aos espaços que as recebem sem mãos suficientes e perfis adequadamente preparados para as acolher. 

 

No meu caso, não foi por esta mudança de cenário e esta tomada de consciência que a decisão de adotar foi ficando adiada. Mas estar mais próxima desta realidade foi decisivo na certeza de que este é um passo que só pode ser dado por pessoas bem estruturadas e com maturidade para a vida, o que, como bem se sabe, é ambição de muitos mas uma conquista de poucos.

 

Ontem á noite, uma reportagem da TVI dava conta do numero de crianças que são devolvidas antes da conclusão do processo de adoção. Não sendo novidade para mim este bizarro fenómeno, não deixa de continuar a causar-me perplexidade e indignação. Porque revela que muitos dos que desejam adotar não fazem ideia daquilo ao que vão e porque revela que o trabalho de casa - de quem em segunda linha devia cuidar, proteger e assegurar o bem estar e saude emocional destas crianças, depois dos primeiros terem falhado no desempenho do papel  - continua a não ser feito de forma responsável.

 

Tenho algum pavor a clichés e generalizações e esforço-me por não fazer uso deles na minha vida, mas a verdade é que me é dificil não associar, em muitos casos, a procura de crianças para adotar a mais uma variante do mercado de consumo. Ainda que, como tantas vezes acontece quando falamos do que não conhecemos profundamente, possa ser leviana e injusta, penso-o em relação a esta opção por muitas celebridades internacionais. Mas é fácil pensar o mesmo de muitos dos que se propõe adotar em Portugal.

 

Desejar um filho - e adotar não pode ser nem mais nem menos do que isso - não pode, não deve ser nunca um ato de preenchimento das nossas falhas narcisicas. Desejar e ter um filho só pode, sempre, ser fruto de uma escolha que se sabe que será, em qualquer circunstância, para a vida.

Os filhos, como qualquer grande amor, não vêm com manual de instruções. Não existem fórmulas mágicas que nos façam acertar em tudo na sua educação, assim como não existe nenhum xarope que se lhes dê ao pequeno almoço para que nunca nos desapontem. Mas é essa a essencia do amor incondicional. Quando se ama tudo é possivel e essa é a única magia [grande e real] que tudo salva e tudo compõe. 

 

Compreendo e acho absolutamente indispensavel que o processo de adoção contemple um periodo de experiência, de adaptação, o que lhe quiserem chamar. O que não faz sentido, por manifesto desajuste e atentado áquele que deve ser o cerne da intenção de adotar é que sirva - como num dos casos ontem relatados - para aferir resultados escolares, desempenhos de sucesso e vassalagem de afetos, destas crianças em relação aos interessados.

 

Por razões que não me são dificeis perceber, mas que me são impossiveis aceitar, uma boa parte dos pais de hoje vive ainda completamente orientada para a produção de executivos de sucesso e de gente que terá de ter garantido um emprego e uma vida proeminente, seja a que preço for, custe as dores emocionais que custar. Entopem-se crianças de atividades extracurriculares e explicações, definem-se horários de estudo rígidos ao fim de semana, escolhem-se os amigos pelas contas bancárias e apelidos dos respetivos  pais, compensa-se com todos os gadgets de última geração e uma generosa mesada no bolso e assim se fecha o negócio... com muitas e bem conhecidas repercursões a curto, médio e longo prazo. Não falo ao acaso, mas de casos de conheci na minha infância e outros que vou vendo repetir-se, impunemente.

 

Se já considero tudo isto grave na educação de um filho biológico, não tenho palavras para o qualificar num filho adotado.

 

Uma criança é, será sempre um investimento, mas do coração e não do abrir dos cordões á bolsa.

 

Não se deseja ou tem um filho para nos realizarmos no que não conseguimos - a não ser que esse desejo seja, para nossa felicidade, um desejo genuinamente coincidente de um filho. Não se deseja ou tem um filho para mostrar á familia e vizinhança que somos mais do que toda a vida nos fizeram sentir. Não se deseja nem tem um filho para exibir a folga financeira de lhe pagar colégio, faculdade privada e MBA´s no estrangeiro - como se faz com a celindrada do carro, os metros quadrados da casa e as marcas de roupa com que se desfila. Não se deseja nem se tem um filho para ocupar o lugar de quem nunca conseguimos que nos amasse.

 

Um filho, ou dito de outra forma, um ser humano que depende exclusivamente de um ato de vontade nosso e que não é tido nem achado no assunto nessa decisão, merece, sem dúvida o melhor de nós. Que isso represente, sempre que possivel, o melhor investimento financeiro na sua segurança, saúde, alimentação e educação é não só legitimo como desejável. O que não pode, ou no mínimo não devia, em qualquer circunstância, é ser motivo de contrapartida para o amor que se lhe tenha. Infelizmente sabemos que o é, em muitos casos, nas relações biológicas entre pais e filhos. Que haja a tentação de gente mal estruturada e cheia de boa vontade em fazer coisas boazinhas e ajudar pobrezinhos para gaudio próprio e exibição na rua onde são famosos (ou talvez não), também. Que o Estado se exima de fazer a sua parte é que, cada vez mais, me parece uma gravíssima ação por omissão.

 

Uma boa parte das crianças institucionalizadas não é fácil e a maior parte conjuga o verbo abandonar desde o dia em que foi gerada. Confiar é aquilo que lhes é mais dificil. Entregar o que não se recebeu um ato humanamente impossivel.

 

Escolher o caminho da adoção de uma criança com mais de três anos de idade é saber que se tem, na esmagadora maioria dos casos, pela frente um caminho moroso, feito de altos e baixos, com muitos avanços e ainda mais recuos. É um namoro que se enceta com alguém que mais do que não estar habituado, tem medo de amar e, mais uma vez, ser traído e abandonado.

 

Quem tem filhos biológicos sabe quantas vezes põe á prova os nossos afetos, a nossa paciência e a  capacidade de nos mantermos firmes nas nossas decisões. Sabe também quantas vezes choramos, de dúvida, raiva ou tristeza e choram eles também, pelos mesmos motivos, durante o caminho da relação. Mas ter um filho é tudo isso. E é tudo o resto. E é desejar e conseguir ir sempre mais e mais além.

 

Devolver uma criança que procurámos por decisão nossa, porque ela não nos fez, no prazo legal, sentir bem, felizes e realizados por praticar uma boa ação, só pode ser fruto de uma grande desorganização interna ou má formação. Supor que uma criança nestas condições está preparada para ficar incondicionalmente agradecida,  devolvendo com juros e sem prazo de carência ou dilatação tudo o que recebe de tão altruistas mecenas, é não saber nada da natureza humana nem do que representa o amor na vida. E todos sabemos que há gente que pensa e age assim. Claro que sabemos. O que não se admite é que quem tutela estas crianças faça delas laboratório de triagem, na esperança de com isso tornar os processos mais céleres. De boas intenções está o inferno cheio. Pena que não estejam também as prisões..

Do  Blog Deixa Entrar o Sol
publicado por Jorge Soares às 10:54
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